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O Sr. A e os medicamentos da memória

2009-12-09

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Recentemente, vi outra vez o sr. A. Já começo a rever pessoas com intervalos de tempo grandes, que me procuraram há muito tempo e voltam com problemas novos. Ao mesmo tempo que é gratificante para mim, sinto muitas vezes que o Tempo passou pelas pessoas - é mais fácil do que ver o Tempo a passar por nós. Se há alguma coisa que nos une como humanos é que todos temos direito a um nascimento e a uma morte – o que nos diferencia é a maneira como passamos o Tempo no intervalo de ambas.

Lembro-me do sr. A. Às vezes o que fixo das pessoas são pormenores estranhos, que por qualquer razão me dizem muito. O sr. A tinha um cão chamado Mondego, que era o nome do meu cão quando era pequena. Acho que foi por isso que consegui lembrar-me do senhor, apesar de já terem passados 4 anos. Doutra forma não me lembraria - o sr. A que era grande e gordo, com um bigode farfalhudo e um ar imperial, está um farrapo de pessoa – magro, encovado, com uns olhos grandes e saídos e um ar triste, triste, de quem não está bem em lado nenhum.

O sr. A foi emigrante em França, e coleccionou lá uma série de pequenos enfartes cerebrais, que eu já tinha observado na consulta anterior. Até agora não parecia haver nenhuma alteração, mas a morte da mulher há cerca de 6 meses tinha desencadeado um processo de falta de memória e de desorientação, que se traduz na consulta num discurso quase incoerente. Vem com ele uma vizinha que teve dó. A morte da esposa, conta, foi um desastre (o que é frequente, e não vou comentar sobre definições de sexo forte e fraco). Passou a viver sozinho, a esquecer-se de comer, de tomar a medicação, não sabe bem quantas camisas deve vestir, esquece-se dos dias e já se perdeu na aldeia. É uma aldeia pequenina e todos se conhecem: dentro do egoísmo próprio de cada um, até se têm preocupado com ele. O sr. A não tem filhos, mas tem uma boa reforma - que perde em casa. É a vizinha que vai administrando o dinheiro quando o encontra, fez-me lembrar aquele conto do Júlio Diniz do velhote que acendia o lume com notas de banco, já que não sabia para que serviam…

Os medicamentos que podemos usar para tratar o sr. A. são de dois tipos: ou tentamos travar o trabalho de uma enzima que destrói uma substancia química relacionada com a memória – a acetilcolina - ou tentamos travar a morte das células cerebrais através de substâncias químicas da mesma categoria da acetilcolina, também chamados neurotransmissores (porque transmitem informações no sistema nervoso). Os fármacos estão no mercado e a acreditar nos laboratórios são fantásticos - embora a experiencia clínica nos diga que são fantásticos numa pequena população de doentes. Na maioria das vezes ajudam a diminuir a progressão da doença, mas não curam nem resolvem o problema. E são muito caros. O que leva ao problema seguinte: devo prescrever, porque há uma ou várias possibilidades de ajudar seriamente este doente, mas ele vai comprar? Ou vai tomar um por semana para poupar, ou não os compra e depois diz-me que sim?

À volta dos medicamentos para a demência há múltiplas histórias de dificuldades, de revolta, de tristeza e sobretudo de resignação contra um mal que afasta o doente da família e da imagem de si próprio. É muito triste, para o doente no inicio, para a família ao longo de todo o processo. Seria menos triste se estas famílias e estes doentes pudessem contar com pelo menos a medicação gratuita como outros doentes e outras doenças têm. A civilização de um povo vê-se na maneira como são tratados os mais fracos. E na nossa, os mais fracos são sem dúvida, os mais velhos e os mais novos. Este é um daqueles pormenores pequenos, muito pequenos (e em relação a todos os imensos problemas económicos e morais com que nos debatemos, mesmo pequenos…) que me leva a perguntar se teremos mesmo uma sociedade civilizada em relação aos extremos? Tenho muitas dúvidas.



Autor
Assunção Vaz Patto

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
tempo / Recentemente / morte / pessoas / pequenos / triste / doentes / doente / tinha / memória

Entidades
sr. A. Já / sr. A. / Júlio Diniz / Sr. A / Tempo

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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