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O silêncio dos bons

2010-04-14

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Os bons fazem barulho, denunciam coisas e são, quase sempre, apelidados de mau feitio.
F. deveria ter 30 e tal anos, era uma gordinha simpática de olhos azuis e aloirada, fruto dos antepassados celtas que ficaram pelo litoral. Era de Aveiro, mas tinha casado na Serra e cá ficara. Queixava-se de dores pelo corpo todo. Já tinha corrido tudo e tinha um diagnóstico certíssimo de fibromialgia mas, para além do diagnóstico, ninguém lhe tinha conseguido tirar as dores. Era ajudante de cozinha num lar e estava o dia todo de pé; as dores eram nos pés, mas também nas mãos e, à noite, tinha formigueiros por todo o lado. Trazia análises que estavam normais, incluindo as provas da tiróide e os níveis de vitaminas, mas o açúcar no sangue estava um bocadinho alto. "Acho que é por ser gulosa , sabe? Como doces todos os dias!". Ao exame, apresentava alterações da sensibilidade até ao joelho e até ao meio do braço, respectivamente, e as respostas reflexas das mãos e pés eram fracas. Perguntei por outras causas mas tinha sido sempre saudável e só se lembrava de diabetes na avó materna. Exames complementares confirmaram a existência de uma diabetes tipo I, já avançada, tendo começado logo o tratamento. As dores resultavam de uma inflamação dos nervos periféricos, que se denomina neuropatia diabética. Na maioria das vezes, se tratada atempadamente, a neuropatia diabética pode melhorar e há medicamentos que reduzem as sensações de formigueiros que os doentes têm. Não estranhei o ar deprimido que F. tinha quando nos voltámos a ver - pensei que era por causa dos doces que já não comia… Que não, andava com problemas no trabalho e não sabia o que havia de fazer. Dei comigo a tentar não saber - tinha tido uma consulta pesada e não há comprimidos para resolver problemas do trabalho - e às vezes sabe bem fechar os olhos às misérias do mundo. Confesso que foi feio da minha parte, mas F. estava lançada e desesperada para falar. Ainda me senti pior com a minha "fuga" quando ouvi o caso. Que havia uma cozinheira principal que tinha tomado uma colega de ponta e lhe fazia a vida negra. A outra coitada, era apoucadita e não se defendia e a cozinheira passava o dia a insultá-la e a dar-lhe os piores trabalhos. F. tinha medo dela também - e ainda por cima era amiga do chefe máximo que a tinha contratado e o marido achava que ela não se devia meter, não era nada com ela. E não era. Mas aquilo moía todos os dias, ver aquelas injustiças e não poder fazer nada…

Dei comigo a pensar na F. nas cerimónias de Sexta Feira Santa. Não vou às cerimónias muitas vezes, são compridas, está frio e às 9 da noite num feriado só quero dormir…Mas este ano fui e dei comigo a ouvir e a pensar. Já estou a ver toda a gente a resmungar com a minha falta de atenção mas foi culpa de Poncio Pilatos. Pilatos, o bom e justo, amigo de César que deixou um inocente morrer às mãos da multidão porque teve medo. Apesar de tudo, acho que a História foi muito simpática com ele, se calhar porque os historiadores sentiram dentro deles o mesmo medo que ele deve ter sentido. A apatia, o lavar as mãos dos problemas, o olhar para o outro lado faz tudo parte do nosso código genético. Pilatos foi só humano. É terrível pensar no que aconteceu por causa disso. E se ele se tivesse negado a entregar o Senhor? Provavelmente seria morto, mas o Cristo teria pelo menos alguém do seu lado, depois de ter sofrido a traição dos apóstolos. Essa também deve ter sido muito dura… A Paixão não foi só uma enorme tragédia de sofrimento físico, mas foi o isolamento completo de um ser humano, sem amigos, sem ajuda de ninguém em frente de todos os outros. Um só, contra o mundo.

A tal frase sobre o silêncio dos bons - "não tenho medo do barulho dos maus, mas do silêncio dos bons"- é de Martin Luther King. O problema é que os que se calam não são bons - são passivos, são amorfos, são simpáticos para os chefes e para os sistemas. Os bons fazem barulho, denunciam coisas e são, quase sempre , apelidados de mau feitio, agitador, terrorista conforme o nível de barulho que fazem. Ah, e expulsam vendilhões do templo. No tempo de Jesus, eram crucificados.

A Páscoa é uma celebração da ressurreição do Senhor, porque cremos que Ele está vivo e ressuscitou dos mortos e nos trouxe a promessa de uma Vida Eterna. Era bom se conseguíssemos sentir uma Páscoa dentro de nós que nos levasse de facto a sermos bons como Ele e não apenas passivos como Pilatos. Não são precisos muitos bons para mudar o mundo, precisa-se de coragem para alguns, poucos, o fazerem.



Autor
Assunção Vaz Patto

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
tinha / dores / Pilatos / mãos / medo / barulho / Dei / eram / problemas / comigo

Entidades
F. / Serra / Confesso / Poncio Pilatos / Pilatos

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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