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Analfabrutos com diploma

2010-11-17

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Um dos meus doentes recusa-se a ir às aulas porque nas Novas Oportunidades faz três anos num só e não se chateia mais. A mãe acha que ele está deprimido. Eu acho que sofre de esperteza saloia….

Não sei porque vi tantas professoras naquele dia. Estava a fazer electromiografia no fim da tarde e era um dia em que todos os exames podem ser iguais… se não fizermos nada para os diferenciar. A electromiografia é uma técnica e, como técnica, não precisa teoricamente de grande input clínico do doente. As queixas de dores podem ter imensas causas e a electromiografia pode fazer diagnósticos mas nem sempre se consegue dizer mais do que "não é isto"… De qualquer forma naquela tarde a maioria dos doentes tinha dores nas mãos e era professor. De várias idades, de vários ciclos e com estatutos diferentes na carreira e na vida.

A primeira doente foi a senhora X que tinha um síndrome do canal do carpo marcado na mão direita. Já apresentava atrofia da eminência tenar à direita mas queixava-se sobretudo à esquerda, de uma mão que parecia perfeitamente normal. De facto, se à direita o nervo estava já quase ausente ao estímulo eléctrico, à esquerda o nervo mostrava-se doente, mas a funcionar - daí a presença de dores intensas quando comparado com o nervo à direita. A senhora Y que se seguiu era bem mais nova, tinha o que me pareceu uma artrite nas mãos bilateralmente e um EMG normal. A senhora C, quase na reforma, tinha uma tendinite de Quervain - uma inflamação do tendão dos músculos do polegar. E a senhora D finalmente tinha um problema do carpo só à esquerda – era canhota – mas com dificuldades progressivas no exercício da sua função. O facto de serem doentes mais ou menos jovens dificultou um bocado a conversa: já reparei que as senhoras mais idosas falam mais facilmente dos filhos, do que fizeram, do que ainda querem fazer – defendem-se menos, como se já não tivessem tanto medo do outro. Estas doentes não – para além de pertencerem a um estrato social específico, em que não se fala facilmente da sua vida com estranhos – são mais novas e muito mais reticentes. Ora a electromiografia tem um problema – dói. E a dor agrava com a concentração do doente sobre ela, correndo-se o risco de agravar o grau de tensão e dificultar o exame. Logo há que conversar e adaptar a conversa a quem está a receber choques – a bem do resultado e do doente.

De que se fala com professores? Eu tive a sorte de ter alguns belíssimos professores na minha vida e aproximo-me da classe com um misto de respeito e de ternura – pelo prazer que foi aprender matemática com a professora Maria José em Oliveira, e história de Portugal com a Ginha (que era miguelista!..), e matemática outra vez com a professora Lurdes, em Viseu, e português com a doutora Teresa, em Santo Tirso, e francês com a professora Angélica que devorava livros como eu e me emprestou imensos..E muitos mais de que me recordo ainda. Um prazer que me fazia gostar de ir diariamente para a escola desde o ciclo, e apesar dos dramas da adolescência em vários liceus (era sempre a miúda nova), a ter gosto em descobrir o mundo. O meu mundo era pequenino na altura - Oliveira, Viseu, Santo Tirso não eram muito grandes, mas a sala de aula era sem dúvida a minha janela aberta. Por isso geralmente ponho a pergunta – gostava de ir à escola quando era miúdo? Porque é que eles - os tais da nova geração que temos em casa e temos de educar não gostam? (e sei, por experiência própria, que não gostam mesmo). Faço como a doutora Manuela Ferreira Leite e digo que cá em casa mando eu e tem de se gostar da escola e pronto? (e se os nosso políticos fossem todos passar uns dias a casa da doutora Manuela, de filhos, não era engraçado?)

Como as dores nas mãos são uma doença da profissão passo a pergunta a muitos professores, e a resposta não é sempre a mesma, mas há pontos comuns: falta de estímulos - ser bom não interessa, a mediania é o estado mais seguro e há que nivelar por baixo (as teorias da nivelação por baixo pós-25 de Abril também estão a dar frutos na economia…). Falta de disciplina – o professor deixa de ter importância na sala (há que nivelar por baixo) e a turma é o elemento que decide – há autoavaliações (para os alunos dizerem que são muito melhores do que os professores pensam? Era o que eu faria…Os teorizadores portugueses da educação são assim tão parvos?) e a turma queixa-se dos professores que ainda exigem…Falta de ensino, facilitismo e, novamente, nivelação por baixo…

Este ano, cerca de nove por cento - nove alunos em cada 100 – da Universidade de Lisboa entrou sem ter completado os 12 anos de liceu necessários. Um dos meus doentes recusa-se a ir às aulas porque nas Novas Oportunidades faz três anos num só e não se chateia mais. A mãe acha que ele está deprimido. Eu acho que sofre de esperteza saloia….O estado a que chegou o País só é possível por sermos uma massa acéfala de indivíduos, incapazes de pensar por nós próprios e sem qualquer capacidade crítica devido a políticas de educação deficientes, a alimentar uma classe política, igualmente acéfala e sem qualquer preparação, produto da tal política de nivelar por baixo…Somos 10 milhões de analfabrutos com diploma, como diria um amigo meu, professor e reformado.

Se vamos conseguir sair da crise? Com este ensino e esta preparação? Não sei. Sei que não conseguimos mudanças sem mudar o ensino, e só mudamos o ensino se ouvirmos os bons professores. Mas não creio que isso interesse. E pelo que tenho ouvido, os professores também acham que não.



Autor
Assunção Vaz Patto

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
doentes / doente / professores / tinha / electromiografia / senhora / direita / dores / mãos / ensino

Entidades
senhora X / Quervain / Maria José em Oliveira / Lurdes / Teresa

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
→ Ver Original

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