Na Covilhã, o remorso apoderava-se da consciência colectiva. Criavam-se castigos divinos para aliviar o arrependimento.
A Borralheira, pacata aldeia da freguesia do Teixoso, voltou a ser falada nos meios de comunicação social. Não como no passado, pelo aparecimento de um interessantíssimo tesouro romano que permanece, hoje quase ignorado, no Museu Nacional de Arqueologia, mas pela reconstituição de um crime que chocou a região e o País.
Diz o velho provérbio que "no melhor pano cai a nódoa", e espaçadamente no tempo violentos crimes abalam o nosso orgulho de pertencer a uma comunidade que se afirma reger por princípios de justiça e solidariedade. O fenómeno não é recente e as vítimas já o eram, antes de o ser. Foi assim com o João Inácio, tal como o foi, na cidade da Covilhã, em 1914, com Manuel Enguiço.
Consta que, nessa data, Manuel Enguiço, um "pobre diabo" que vivia de esmolas, terá, junto ao fontanário de São Silvestre, apunhalado e morto um conhecido oficial do quartel local, o major Eduardo Miguel Correia. Oficialmente existia uma única testemunha, uma criança que assistira ao crime e informara a polícia, outros, porém, afirmavam que havia sido um indivíduo de alcunha "o Russo" quem alertara as autoridades, indicando-lhes o lugar do crime e onde se encontrava o suposto assassino.
Manuel Enguiço foi preso no próprio dia e a notícia foi correndo pela cidade que se indignava pelo sucedido. No dia seguinte a população concentrava-se junto à cadeia, que funcionava em instalações contíguas à Câmara Municipal. Por volta do meio-dia alguém gritou, "morte ao Enguiço", a população, tal rebanho de ovelhas tresmalhadas segue em direcção à porta do cárcere, arrombando-a. Manuel Enguiço é arrastado pelas escadas, sendo selvaticamente agredido. Já em pleno Pelourinho, é-lhe atada uma corda aos pés e dali é arrastado até ao cemitério, onde é colocado junto à cova aberta para servir de sepultura ao major. Seguidamente a multidão tresloucada empurra o Enguiço para dentro da sepultura e enterra-o ainda vivo.
Manuel Enguiço era o assunto do momento, novas versões acerca da morte do major começavam a surgir, o ajuste de contas de um companheiro do oficial que lhe ambicionava a promoção, o acto premeditado de um rapaz que não aceitava que o major não o deixasse namorar com a filha, razões políticas (…).
Entretanto o crime era comentado em todo o País e perpetuado em verso – Lá em cima no cemitério/ Por essas campas além/ Eduardo Miguel Correia/ Manuel Enguiço também.
O meio político da época tentou aproveitar-se do acontecimento, no parlamento os evolucionistas questionavam o Ministro da Guerra sobre a falta de segurança dos oficiais.
Na Covilhã, o remorso apoderava-se da consciência colectiva. Criavam-se castigos divinos para aliviar o arrependimento., dizia-se que os malfeitores ficaram enguiçados, que um homem chamado Feijão perdeu uma perna porque saltara com os pés em cima de Manuel Enguiço.
A população arrependia-se de ter agido impulsivamente e de forma impensada, talvez o mesmo arrependimento que surge quando se opta pela cumplicidade do silêncio.
Autor
carlos madaleno
Categoria
Opinião
Palavras-Chave
Enguiço / Manuel / Covilhã / crime / major / população / junto / Correia / País / Miguel
Entidades
João Inácio / Manuel Enguiço / São Silvestre / Eduardo Miguel Correia / Enguiço
Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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