A partir do momento em que os homens são reduzidos a números fazem-se enormidades.
A senhora M era um papel com um "Urgente" escrito à mão, a referir um quadro de traumatismo crânio-encefálico com desorientação e agressividade numa doente com fractura da coluna e necessariamente imobilizada. Faz-se um quadro mental: gritos, olhar esgazeado, sudorese profusa, as mãos e os pés amarrados às grades (o que agrava ainda mais o quadro - imaginemo-nos por um instante nessa situação). Vai-se depressa. Há vários fármacos que conseguem controlar a situação, mas não são os mais usados pelos colegas ortopedistas. Eu, por outro lado, não sei muito sobre fracturas mas sei que as de coluna, se não estiverem imobilizadas podem provocar danos graves quer na estrutura da coluna quer na integridade medular, com possíveis lesões nos nervos que vão para os membros superiores e inferiores. Daí a minha pressa. Alguém me indicou um quarto onde estava uma senhora ao telemóvel - nada da minha imagem mental, por isso sosseguei e fui buscar as notas. "- Então senhora dona M, como está?" " Ai, doutora, estou num monte!.." Caiu-me a alma aos pés: afinal era uma desorientação - pois se "estava num monte…". Há quanto tempo é que pensa que está num monte? - perguntei baixinho à enfermeira que se ria " Ah, doutora isso é uma expressão da Guarda - estar num monte quer dizer estar no meio de grandes problemas e sarilhos. A senhora até está melhorzinha!".
Nunca tinha ouvido a expressão mas tem a sua lógica. E a senhora M está mesmo metida em trabalhos: de uma senhora independente e activa passa a vítima de atropelamento e fuga, sem se lembrar de nada a não ser das dores e de ter de estar quieta e deitada, dependente de toda a gente. E pior, querem-na pôr num Lar, porque os filhos estão todos emigrados e o senhor M, sozinho, não consegue…Apesar de tudo a senhora M tem sorte: só teve uma fractura de coluna e da cabeça do fémur, que pode ser operada - se tudo correr bem, vai conseguir ir para uma unidade de média duração de cuidados continuados (se ainda não as tiverem fechado) e pode ter a hipótese de voltar a ter uma vida normal…
Mas imaginemos que a pancada na senhora M tinha produzido uma insuficiência renal que não era reversível. Fácil - fazia diálise e pronto. As unidades de diálise ainda não fecharam também - muitas são privadas e delas dependem imensos doentes. Que vão dia sim, dia não, ligar-se a uma máquina para permanecerem vivos até conseguirem um rim compatível que possa ser transplantado. Aqui começariam mesmo os problemas da senhora M. O anúncio de cortes em 50 por cento do programa de transplantes nacional (sendo este programa um justo orgulho para a classe médica e para os restantes profissionais das equipas, colocado num nível alto na Europa) é um número apenas. Em vez de fazermos 100 transplantes por ano vamos fazer 50.
Para quem gosta de números, eles contêm uma beleza árida e, ao mesmo tempo, maravilhosa quando integrados em equações, em raciocínios lógicos, em deduções matemáticas. Mas são só números e a sua secura permite fazer coisas em grande: matam-se 6 milhões de judeus com uma assinatura, matam-se 4,5 milhões de ucranianos com uma lei. São só números mas a partir do momento em que os homens são reduzidos a números fazem-se enormidades.
Seria o senhor Ministro da Saúde capaz de deitar fora um rim na frente do senhor António, que tem 32 anos, é insuficiente renal e tem três filhos pequenos? Ou da dona Amélia, que tem 60 e que ainda ajuda uma filha deficiente? Ou da Teresa, que tem 23 anos, um curso para acabar e um namorado que a leva à diálise? Há muitas razões para economizar na saúde, e há muitas maneiras de o fazer - cada um dos que trabalha lá sabe. Mas reduzir o programa de transplantes não é, a meu ver, uma delas. E entra no grupo das coisas que bradam aos céus…
Não é só a senhora M. que está num monte. De facto, estamos todos.
Autor
Assunção Vaz Patto
Categoria
Opinião
Palavras-Chave
senhora / Urgente / quadro / monte / coluna / saúde / escrito / transplantes / muitas / senhor
Entidades
Ministro da Saúde / António / Amélia / Teresa / senhora M.
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