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Palavras de Abril que nada devolvem ao Interior

2014-05-07

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Uma região que resistiu a espanhóis, franceses ou ingleses, que vai ser destruída por portugueses.

Na última consulta no hospital, uma das doentes era uma senhora com 70 anos, pequenina, que vinha com um filho muito grande com um sotaque francês e que me disse logo que era a mãe. Mas ele não sabia nada do caso, porque era emigrante na Suíça. A irmã, que costumava ver a mãe mensalmente, estava em Lisboa para ter um filho. A senhora vivia com dois outros filhos – do que percebi, ambos com algum défice mental. Vinha à neurologia porque estava assim há dois anos.
O problema é que a senhora não falava. Aliás, a senhora fazia o que lhe pedíamos, andava, sentava-se, comia mas, se ninguém lhe dissesse nada, ficava sentada. Não comia, não ia para a cama, não se lavava. E não falava. Nem sequer olhava para nós, e dava a sensação real de que não havia nada lá dentro. Mas, por outro lado, como se explicava que entendesse o que lhe pedíamos? Trazia uma carta da colega a referir um parkinsonismo que não encontrei e havia referência a uma ida à urgência, há dois anos, com dificuldade na fala que reverteu. Mais nada.
Não sou nenhuma santa. A doente cheirava mal, estava muito suja, o filho olhava para o relógio e pedia para me despachar que já estava há muito tempo à espera e eu estava perfeitamente à nora – só me apeteceu escrever de volta à colega a pedir mais informações e recambiar a doente, numa dança em que alguns doentes caem mercê de muita coisa - e da falta de santidade de alguns médicos…Porque o sistema funciona mal, com imensas deficiências, e se ainda funciona é porque há muitos médicos a fazerem muitíssimo mais do que é a sua estrita obrigação. E quem diz médicos, diz toda a gente envolvida no Sistema Nacional de Saúde - mas eu falo com mais propriedade do que sei…Depois há os colegas que estão emigrados e que criticam, os colegas que estão no ministério e que criticam e os doentes que criticam… Mas se nos limitássemos a fazer o que estritamente nos é pedido, pergunto-me onde estaríamos todos: médicos, doentes e Serviço Nacional de Saúde - ou o que resta dele.
Alguns acidentes vasculares cerebrais provocam alterações numa área específica do cérebro chamada área de Broca ou da linguagem. Com o quadro prévio referido, seria possível a doente ter uma perda de linguagem resultante de uma lesão nessa área? Ou será já um processo demencial avançado, com a parte da linguagem afectada? Ou é um quadro psiquiátrico definido com uma incapacidade de iniciativa geral até mesmo na linguagem? Não consegui saber nesta consulta. De castigo pela minha "fraqueza", pedi exames, revi o exame neurológico e marquei-a como suplementar dentro de um mês. E vou ficar outra vez sem almoço…
Mas logo a seguir foi o 25 de Abril e as comemorações e montes de palavras e discursos que ouvi todos, ao vivo e na TV. Lembrei-me do silêncio da doente e pensei até que ponto ela não é mais lúcida. Porque não vão ser as palavras que vão devolver ao Interior os correios que foram fechando, os tribunais que vão fechar, e as escolas e as finanças que já fecharam. De acordo com o plano recente do Ministério da Saúde, provavelmente não vamos ficar com maternidades e não vamos conseguir ultrapassar em qualidade de serviço nenhum outro hospital porque os três que temos estão no nível mais básico, no novo sistema de classificação dos hospitais. Não vão ser palavras que vão devolver-nos as lojas que foram fechando, os empregos que desapareceram e até os filhos que vão emigrando.
Houve palavras sobre isto nas comemorações do 25 de Abril, mas sobretudo para apontar culpas e fazer queixinhas. Ora parece-me que está mesmo na hora de esquecer guerrilhas, de esquecer partidos e compadrios e terras e terrinhas e pensar numa região inteira, empobrecida, desertificada, que tem as melhores pessoas do mundo, que resistiu aos espanhóis, aos franceses, aos ingleses, e que, se não se junta, vai ser destruída por portugueses… A união faz a força. O tempo das palavras já passou e parece que pouca gente se apercebeu disso. E é necessário que rapidamente se fale menos, se aja mais e que o Interior aja como um todo contra o que vem aí. Porque o que vem aí ainda pode ser pior.



Autor
Assunção Vaz Patto

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
Palavras / senhora / doentes / doente / filho / Saúde / Abril / linguagem / médicos / Interior

Entidades
Trazia / Sistema Nacional de Saúde / Serviço Nacional de Saúde / 25 de Abril / Suíça

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
→ Ver Original

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