Tenho medo: porque quem trabalha vai trabalhar mais (…) Quem não trabalha corre o risco de encontrar o desespero.
O senhor M entrou na consulta com aquela expressão vaga duma demência já avançada, Tinha olhos azuis claros, já gastos pelos anos, era baixinho e magro e seco, mas parecia um menino de quatro anos a ir para a escola com a mãe pela primeira vez. A " Mãe" era a esposa, também baixa, magra e seca - "senta-te", levanta-te", "vem"- e o senhor M com o mesmo ar vago e indiferente sentava-se, levantava-se e ia.
Nesse dia era o quinto doente com alterações de memória. Cinco doentes com demência, seguidos, um atrás do outro, não pela patologia, nem pelo tratamento nem pelo exame, mas sobretudo pelos casos, pelas histórias pelo que se percebe e não se diz, torna a consulta um bico-de-obra. E podemos até achar que não sentimos nada, organizar a medicação, fazer o exame, pedir as análises, mas o quadro está ali, pesado, no meio da consulta - um casamento de 40, 50 anos em que um dos membros deixa de existir e é substituído por outra pessoa, que já não partilha as mesmas histórias, as mesmas memórias e que não cria laços, pouco comunica e está dependente, por vezes extremamente dependente. É mau para os casais que se davam mal, mas é péssimo para os que se davam bem. E o que se faz? Não há comprimidos para tratar os cuidadores, geralmente mulheres, geralmente sozinhas, muitas vezes sempre super-protegidas na relação e que aos 70, 75 anos têm de se fazer à vida. As lágrimas a correrem, e a cerrar os dentes.
A senhora M era assim. Não me lembro do que fazia o marido, mas a senhora nunca tinha trabalhado nem descontado para a Caixa. Estavam os dois a viver da reforma dele - ele já não fazia nada em casa nem na horta, ela fazia tudo. Tinham filhos, longe. "O que acontece se ele morre? Não sei, mas eu não quero que ele morra, é o meu amigo sabe?"
O senhor M já lá não está, mas temos de o manter vivo porque é o amigo da esposa, porque lhe dá a ela uma razão para existir e porque lhe garante, vivo, alguma subsistência. Todas as vidas têm de facto utilidade e são uma forma de dar graças, ou então as coisas deixam de fazer sentido.
Sempre que penso neste ano que começou penso na senhora M, nas lágrimas e nos lábios apertados. Penso no que fomos perdendo em 2012 e no que ainda vamos perder. Penso no medo - que tivemos e que vamos tendo cada dia a ver as notícias, a ouvir "os boys" e sem esperança em nada nem em ninguém. (É como se de facto D. Sebastião tivesse morrido no nevoeiro de vez). E tenho medo: porque quem trabalha vai trabalhar mais – e corre o risco de perder a sua voz no meio de um cansaço enorme, que não nos arranca nada do peito… Quem não trabalha corre o risco de encontrar o desespero – e o desespero é um buraco negro sem soluções, onde se perde também a nossa voz e o nosso protesto. E tenho medo que não haja vozes para denunciar, para protestar e para pedir justiça.
Tenho medo e tenho vontade de fugir e de ir para outro sítio e de sonhar com o D. Sebastião outra vez e achar que vai correr tudo bem, mas vou acabar a fazer o mesmo que a senhora M e tantos como ela, bem mais corajosos do que eu - cerrar os punhos e os dentes, tentar fazer o melhor que posso e não perder a minha voz para dizer o que tem de ser mudado.
Se nos concentrarmos em não nos deixarmos mudar pelo mundo, talvez consigamos mudar o mundo, um bocadinho de cada vez.
Autor
Assunção Vaz Patto
Categoria
Opinião
Palavras-Chave
Medo / senhor / mãe / trabalha / senhora / penso / consulta / risco / corre / desespero
Entidades
Mãe / D. Sebastião / Caixa
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