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Crises de outros tempos

2011-03-09

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Ao que hoje nos afronta, por certo, haveremos de saber dar resposta.

Nas vésperas de um carnaval, das eras de sessenta, o rapazola havia estado até às tantas na conversa, em cima da ponte, já com um cheirito a aguardente. A idade andaria a rondar as vinte primaveras e o seu destino seria o subir das ladeiras em cada dia, com a merenda a tiracolo, a caminho das Minas da Panasqueira, onde já os antepassados e parentes próximos haviam lutado e continuavam a lutar, a bom lutar. A conversa esgotou-se e cada um foi à sua vida, na esperança de novos encontros em dias sucessivos, como era habitual desde longos tempos e nos finais da semana. O certo é que o dito cujo deixou de aparecer sem que ninguém soubesse do seu paradeiro e nem uma única ponta do seu rasto parecia ser conhecida. Duas semanas depois, à socapa, lá era chegada a notícia – o fulano, pela calada da noite e sem dizer nada a ninguém, pirou-se para França, a salto, sem dizer nada e sem levar o que quer que fosse consigo. Nem a própria família, segundo se apurou, sabia do seu paradeiro, pois só passados alguns dias um amigo, também fugido, conseguira entrar em contacto dizendo que o tal amigo havia chegado ao local onde ele se encontrava e que já ia trabalhar no dia seguinte. Falta dizer que o sujeito havia sido presente à inspecção militar, semanas antes, na qual havia sido apurado para todo o serviço. Os contactos foram, de facto, perdidos por longos tempos, até que um outro, seguindo as pisadas do primeiro, passou a químico tudo aquilo que o anterior havia experimentado, inclusivamente o desconhecimento por parte dos familiares. A França havia sido o destino de ambos e seu ponto de encontro, mais tarde relatado em pormenor após anos de espera para legalizações que tardaram.
Nesses tempos não se falava de crise nem os automóveis se apinhavam nas vias de acesso às grandes cidades. Falava-se mais de ganhar a vida e fugir à guerra. A luta era de sobrevivência e de fuga ao serviço militar obrigatório, que encaminhava os jovens para África, de onde muitos acabariam por vir maltratados, quando não mesmo deitados num caixote de pinho, conforme reza a canção. Os casos simples que mereceram a nossa observação são hoje chefes exemplares de famílias que regressaram ao ponto de partida, a seu tempo, com significativo espólio que lhes tem permitido uma vida de equilíbrio, depois de proporcionarem aos seus um outro tanto em termos de formação académica e social. Isto apenas para dizer que os problemas sociais não são só de agora, pois sempre tiveram os seus contextos próprios e as suas épocas carismáticas para o que sempre foi necessário deitar mão das capacidades, do dinamismo próprio e das vontades individual e colectiva dos cidadãos. Quando hoje se ouve dizer que tudo tem que ser obra de um só não estaremos nós a subvalorizar a nossa própria identidade, aquela que sempre foi tida como apanágio lusitano desde o pastor dos Montes Hermínios e dos que, através dos mares nunca dantes navegados, foram dando novos mundos ao mundo, até aos que foram capazes de partir em busca de melhores dias e melhor sorte? Ao que hoje nos afronta, por certo, haveremos de saber dar resposta., respostas que não hão-de servir para superar as outras que depois irão seguir-se. A vida afinal é uma sucessão de crises, cada qual com o seu tempo e suas características próprias. O saber, a vontade, a coragem e outros ingredientes é que hão-de ser tónicos para superá-las. Puxemos por eles.



Autor
Sérgio Gaspar Saraiva

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
havia / tempos / vida / certo / lutar / sido / conversa / França / saber / carnaval

Entidades
Minas / Panasqueira / França / África / Montes Hermínios

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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