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Reviver Abril

2010-04-28

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Não é fácil esquecer-se Abril.

Mais de três dezenas e meia de anos se gastaram desde aquele Abril que marcou gerações, numa das quais nos encontramos hoje inteiramente envolvidos com seus defeitos e virtudes. Os primeiros parecem saltar-nos aos olhos a cada momento e, das segundas, as tais virtudes, quase nem nos damos conta, assim o julgamos porque depressa esquecemos. A memória bastas vezes peca por ter a fama de curta e nem sempre estamos dispostos a olhar para trás com o verdadeiro sentido de podermos enquadrar realidades em seu tempo e circunstâncias.

Pois, foi precisamente num florido Abril dos anos sessenta, que um tal rapazote amigo desaparecera dos locais habituais de convívio, sem nada dizer, ele que era um destemperado fala-barato. Ninguém descobria para onde teria ele ido e como havia desaparecido de tão estranha maneira. Ninguém sonhava com seu paradeiro e ainda houve quem fosse deitar os olhos e espreitar para poços existentes em propriedades conhecidas, não tivesse o rapaz caído inadvertidamente para lá ou, mesmo desesperadamente, se tivesse atirado de cabeça. Depressa se arranjaram justificações. Fugiu, foi o que foi, mas ninguém vira e as certezas eram poucas. Dos familiares, nicles. Deve ter ido a salto para França, generalizou-se o comentário. Exacto, foi o que foi e mais nada. Certo, certinho.

Nesse dito Abril, pela calada da noite, sem nada dizer a quem quer que fosse, o Tónio introduziu uma broa e um chouriço no pequeno saco, onde coube também um frasco de xarope do tinto que o pai religiosamente guardava. Meteu uma nota de mil escudos num dos bolsos e, em desalinho vertiginoso, como viria a contar anos mais tarde, palmilhou léguas e léguas sem fim, escondendo-se entre arbustos durante o dia e palmilhando carreiros, disfarçado, durante a noite. A Espanha era perto, mas era longe; a França muito mais longe ainda. Uma semana inteirinha, em andanças irregulares, inseguras e incertas, numa aventura a que nem todos teriam a coragem de se abalançar. Mas foi isto que o Tónio contou e que outros Tónios poderão ainda hoje confirmar também. As razões para tal atitude não seriam muitas, mas uma sobressaía sobre todas as outras: a idade do recrutamento militar, a guerra em África, o receio de ir e não voltar, de regressar mutilado como a alguns já havia acontecido. Razões para o Tónio meter na cabeça que teria que dar à sola, pela calada, custasse o que custasse, doesse o que doesse e a quem doesse.

Neste Abril em que ainda nos encontramos, já no século XXI, muitos ainda se lembrarão de episódios como este, mas muitos mais serão os que terão esquecido toda essa realidade, para não falar daqueles para quem tais passagens mais não serão que histórias a acrescentar às de navegantes do século quinze, das quais muito se fala nos compêndios.

Se o Tónio teve ou não as suas razões, ele lá saberá ainda agora. Só que, num outro Abril também dos anos sessenta, um seu amigalhaço, vestido de camuflado, partira com outros rumo aos confins africanos onde, após duas semanas de viagem atribulada, desembarcara sem saber onde. Logo na primeira noite, dera conta de uma daquelas cenas que nem só os filmes são capazes de relatar. Nas entranhas de uma densa floresta, mesmo floresta, entre gritos, foi chamado a prestar socorro a um companheiro atingido por uma bala certeira que lhe abrira qual cratera em plena perna direita. Um mar de sangue, num mar de dor.

Por tudo isto, e não só, não é fácil esquecer-se Abril. Até pelo simples facto de podermos dizer, sem medo, estas e outras coisas.



Autor
Sérgio Gaspar Saraiva

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
Abril / Tónio / virtudes / Ninguém / Reviver / gerações / razões / dezenas / meia / gastaram

Entidades
Certo / Tónios / Abril / Depressa / França

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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