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Droga de vida

2015-05-13

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O Notícias da Covilhã inicia esta semana um conjunto de reportagens sobre vidas ligadas ao mundo da droga.

Alexandre e Rui começaram, ainda jovens, a usar drogas. Acabaram por perder o controlo das suas vidas, numa espiral descendente que os fez perder os amigos, a confiança da família, o convívio com os mais próximos e a dignidade. Bateram no fundo, têm consciência da dor provocada, da necessidade de mudarem o estilo de vida e olham para a luz ao fundo do túnel em que entraram com a esperança de conseguirem sair das trevas em que vivem.



A filha de Alexandre tem sete anos. Quando for grande quero ser médica, para curar o pai, diz. Esse é também um dos desejos de Alexandre. Tratar-se. Aos 34 anos, sente ter perdido "tudo". Sobretudo, a dignidade, reconhece. Quando partilha as palavras da filha, com quem já não vive, afunda a cabeça entre os ombros. Baixa os olhos. Faz soar um riso nervoso. Traça planos a longo prazo para resgatar a pessoa que já foi e da qual pouco sobra. Mas isso é para depois, quando, ainda não sabe como, conseguir libertar-se das amarras que lhe condicionam a existência. Para já, algo se sobrepõe a tudo o resto. "A droga ainda é a coisa mais importante da minha vida", admite.

Como é que isso se explica? Como é que os gramas da próxima dose de heroína podem ter prioridade em relação aos pais, à filha, aos amigos, a um tecto? William Burroughs, escritor da geração "beat", dizia que se nunca se foi viciado, não se pode compreender o que significa, para um toxicómano, precisar de drogas. Alexandre, chamemos-lhe assim, sempre teve abertura para experimentar novas substâncias. Usava para ter sensações diferentes. Para se sentir a sair de si. Umas vezes para ficar eufórico. Outras, para se alienar. Consumia para sentir prazer, com a sensação te ter tudo controlado, sem pensar nos riscos reais. Às tantas, apercebeu-se de que tinha sido apanhado na teia. De que estava a ressacar. De que já não era ele quem conduzia a sua vida. Passou a consumir não para ter prazer, mas para não sentir dor.

Família foia a principal vítima
Desde a adolescência que fumava charros no colégio, com os colegas. Aos 15, numa rave, experimentou anfetaminas. Aos 17 um conhecido, professor, ofereceu-lhe heroína. "Na primeira vez até vomitei", conta. Mas a reacção não o dissuadiu. Em poucos meses, e sem se dar conta, estava a consumir diariamente. "A partir daí, vieram as consequências. Depois, foi um desenrolar de situações degradantes", recua, sem na altura imaginar o quão fundo bateria.

A família já desconfiava, desde que o comportamento se alterou e começaram a desaparecer coisas de casa. Tiveram a confirmação quando um dia se viu a ressacar. Ao longo de todos estes anos, apesar de todo o sofrimento que lhes infligiu, sente-se grato por sempre ter tido o apoio da família, a sua "principal vítima", como aconteceu nessa primeira tentativa. Fez um tratamento antes de ir para a tropa, onde a única droga consumida era o haxixe. Quando regressou, recaiu na heroína e entrou numa espiral descendente de que ainda não conseguiu sair.

Vendeu aliança do pai
Roubou, colocou-se em situações de perigo, perdeu a confiança dos que lhe eram próximos, traficou, arranjou problemas com a justiça, acabou a viver na rua, a dormir em casas abandonadas, já na companhia da namorada. Quando a conheceu, ela tinha "um bom emprego" e não sabia que Alexandre se drogava. Acabou por descobrir e acompanhá-lo nas viagens frequentes a Ciudad Rodrigo. "Um dia, estava em Espanha, a consumir, e ela também consumiu", lembra, sem conseguir detalhar se a incentivou, se a tentou demover, mas com a culpar de a ter arrastado para esse mundo. O vencimento dela, razoável, dava para se manterem, ao mesmo tempo que vendiam para suportar os gastos com os consumos. Só que ela por vezes não conseguia ir trabalhar. Acabou por perder o emprego. As doses aumentaram. "Chutavam" o que era para si e o que era para vender. Tirar bens aos pais, empresários, pessoas com uma vida desafogada, acabou por se tornar habitual para Alexandre. Aquilo de que mais se arrepende.

Todo o ouro dos pais foi convertido em cocaína e heroína. "É aquilo de que mais me arrependo", lamenta, enquanto fala de situações a que estiveram associadas ressacas, discussões, gestos irreflectidos. "É muito doloroso", frisa. Um dia furtou a aliança do pai, raspou a inscrição com a data do casamento e vendeu-a. "Na altura, a única coisa em que pensei é que era bem pesada e que já estava safo alguns dias".

O grande sonho do pai, realça, é vê-lo bem e a trabalhar com ele na empresa da família, mas cada oportunidade que lhe foi dada, Alexandre desperdiçou. Aproveitava para pôr em prática esquemas ardilosos para subtrair dinheiro aos progenitores. Tirava-lhes o cartão multibanco de madrugada e ia levantar dinheiro. Acompanhava o pai para tentar descobrir os códigos de segurança e desviava somas. Mais nunca era suficiente. "Hoje, um pacote custa 10 ou 15 euros. Já tive dias de comprar seis pacotes", conta.

Acabaram por se saturar. A casa, actualmente, parece uma fortaleza, com grades nas janelas, cerca a dificultar intrusões e alarmes por todo o lado. "Ele gostava que trabalhasse com ele, mas não dá. Sei que é um desgosto e eu também sofro com isso. Percebo que tenham perdido a confiança em mim, porque me deram muitas oportunidades", reflecte.

"Limpei o organismo, mas a cabeça não"
Esteve quatro vezes em comunidades terapêuticas, sem sucesso, por não ir motivado para o tratamento. "Lá limpei o organismo, mas a cabeça não". A última na altura em que soube que ia ser pai e vivia, com a namorada, nas ruas da Covilhã. Até a bebé nascer, parou os consumos. Arranjaram casa. A família ajudou. Depois, voltou a drogar-se às escondidas e com o passar do tempo a namorada também recaiu. "A tentação está sempre à espreita. Pensa-se nisso todo o dia. Se me poem a heroína à frente, não consigo dizer que não", recrimina-se. Entretanto, a namorada fez um tratamento e acabaram por se separar. Desde os três anos que não vive com a filha, que vê uma vez por semana.

A tomar metadona, aparece todos os dias junto da equipa de tratamento para a dose diária. O resto dos dias passa-os a vaguear, a beber, a fumar charros, a fazer o trabalho comunitário por causa de um assalto e por ter sido apanhado a dormir numa casa desabitada. Num discurso errático, garante não estar a consumir heroína. A sua vida, analisa, "está uma bandalheira horrível, mas ando assim", diz, resignado. "A minha vida é lixo. Não me orgulho", acrescenta. E mudar? Tem essa "esperança de até aos 40 anos ficar recuperado". A luz está ao fundo do túnel, resta-lhe capacitar-se que quer mesmo caminhar nesse sentido e domar o "bicho" da adição, porque tem consciência de que é uma decisão que ninguém pode tomar por ele.



"Vivo dependente de um bocado de pó"

"Se a droga não fosse uma coisa boa, ninguém se metia nela. Passa a ser má quando toma conta de nós", enfatiza Rui, 36 anos, que há muito percebeu que o mal que faz não compensa o bem que sabe. Fuma charros desde os 12 anos. Na tropa um rapaz do pelotão vendia heroína e experimentou, mas foi já na Covilhã, com amigos, que passou a fumar com regularidade. "O pessoal juntava-se ao fim-de-semana. Depois passou a ser dia sim, dia não, e a certa altura já era todos os dias", conta.

A sensação enchia-lhe as medidas. "É tudo cor-de-rosa. A gente pode ter muitos problemas, desaparecem. Quando se consome, esquece-se tudo o resto, a razão deixa de funcionar. A droga é um refúgio", descreve. Quando se passou a injectar, para conseguir mais rapidamente o efeito pretendido, apercebeu-se de que tinha ido longe demais. Onde nunca pensou chegar, até porque censurava quem o fazia. Afinal, o pesadelo estava só no início. O corpo pedia mais e mais. Chegou a um ponto em que já consumia apenas para conseguir funcionar, para ser capaz de sair da cama, para ter força para ir trabalhar.

"Em 17 anos, nunca estive limpo"
O salário não chegava, por isso começou também a vender e a roubar em casa. "Eu ia a Espanha e deixava lá 500 euros num dia", recorda. "Cheguei a consumir 15 pacotes por dia, 3 a 4 gramas num dia", acrescenta. Tornou-se óbvio que estava "preso" num cárcere de que ainda hoje não saiu. "Em 17 anos, nunca estive limpo", lastima. Esteve em três comunidades. Quando voltava, recaía por via do álcool. "Se a cabeça não quiser, não há programa que nos cure. A nossa cura está na nossa cabeça", sentencia. E a sua continua sem encontrar mecanismos que lhe permitam sair desse modo de vida que não o deixa viver.

Esse é, de resto, um assunto que ocupa o pensamento de Rui, como prefere ser chamado. "Todas as manhãs, quando acordo, penso como a minha vida seria melhor sem drogas. Vivo dependente de um bocado de pó. Penso muito nisso, mas a droga tem ganhado sempre", salienta. É o temor da sensação de privação. As dores no corpo todo, os arrepios, os suores frios, o cansaço. "É a pior coisa que senti na vida", considera.

Mãe dos filhos também toxicodependente
Como uma "bola de neve" que é, o uso de drogas arrastou consigo uma avalanche de problemas. Procurava alhear-se na cocaína e, sobretudo, na heroína, o seu calmante predilecto, enquanto a sua tragédia pessoal, que inevitavelmente contagiou a família, se agravava. Foi no mundo da droga que conheceu a mãe dos filhos, também ela adicta. Há alguns anos, desapareceu sem deixar rasto, até hoje. Os pais, que sempre o tentaram ajudar e foram perdendo a esperança, criaram-lhe os dois filhos, de 11 e 14 anos. Quando lhe apanham drogas ou material relacionado com o consumo em casa, confrontam-no. Pedem-lhe que pare. Não consegue explicar porque não é capaz de aceder ao apelo. Mas tem a certeza que quem se droga é porque não é capaz de enfrentar a realidade e esconde-se dessa forma. "Eu ainda não consegui ultrapassar os obstáculos da vida. Sabendo o que passei, continuo. Não sei explicar porquê", murmura, de braços cruzados, olheiras fundas e o pé sempre a abanar, como que para sacudir o nervosismo de estar a falar de algo tão íntimo e que o fere, por saber que, com o seu comportamento, está a afectar quem o rodeia. Quando está em desespero, envergonha-se da pessoa em que se transforma, porque tolda-se-lhe o pensamento lógico.

"Perdi a dignidade"
Actualmente Rui toma medicação de substituição. Não há muito tempo, apanhou um susto. Esmagou o comprimido e injectou-o. O resultado foi uma infecção no joelho. Isso fá-lo recordar outros momentos de que não se orgulha. "Antes de ir para comunidade, cheguei ao ponto mais baixo. Perdi a dignidade. Como não conseguiu encontrar veias, já me picava no pénis, no pé, nas pernas, no pescoço", deplora.

Para já, encolhe os braços e diz que são dias em que o Diabo o vai tentando. Mas pensa numa vida sem drogas. Imagina-se a largar a que tem sido a sua verdadeira namorada, a heroína, e a reconstruir a sua vida. Só não sabe quando. "Para concretizar os meus sonhos, não é nesta vida. Assim só me enterro mais. Tenho uma ponta de esperança", confidencia.



Autor
Ana Ribeiro Rodrigues

Categoria
Secções Centrais

Palavras-Chave
vida / Droga / Alexandre / heroína / drogas / família / pai / Notícias / casa / pais

Entidades
Alexandre / Rui / Traça / William Burroughs / Roubou

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
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