O Presidente não disse mais do que aquilo que o País sabe e pensa, mas caiu-lhe em cima o seu passado.
Presidente da República disse, no seu discurso de posse, aquilo que o País sabe e aquilo que o País pensa. Não são necessárias sondagens para se poder afirmar que, mesmo entre os eleitores dos deputados que não aplaudiram Cavaco Silva na quarta-feira, ou que o criticaram abertamente, uma grande percentagem concorda com o diagnóstico e espera há muito dos agentes políticos, no poder e na oposição, que tomem atitudes, iniciativas e decisões como as que Cavaco indicou para tirar Portugal do atoleiro em que se encontra. Começando pela procura de consensos alargados, políticos e sociais, a que o Presidente fez apelo.
Devemos, pois, regozijar-nos por estar alguém no topo da hierarquia do Estado com a capacidade de interpretar e dar voz à opinião dominante, que é sustentada pêlos factos. Num regime em que o Presidente tem uma legitimidade eleitoral própria, mas poderes escassos, a palavra é a sua arma, como o próprio Cavaco Silva já teorizou e Mário Soares percebeu em devido tempo. Deve, pois, usá-la com toda a liberdade que o voto lhe confere e toda a autoridade que o cargo lhe outorga.
Porque provocou então o discurso presidencial tanta surpresa? Porque um político com biografia e há tantos anos na primeira linha corre sempre o risco de lhe cair o passado em cima. No caso de Cavaco Silva, o passado recente como Presidente da República e o passado distante enquanto primeiro-ministro ao longo de dez anos. Não é impunemente que um Presidente muda de agulha de um mandato para outro, com um discurso de ataque ao Governo — ainda que nem só o Governo fosse visado — depois de um primeiro mandato ´que começou na "cooperação estratégica" com esse Governo e terminou em prolongados silêncios, eleitoralmente interessados, quando a situação do país já reclamava as palavras desta quarta-feira. E não é impunemente que um ex-primeiro-ministro denuncia a promiscuidade entre poderes públicos e interesses privados, ou sublinha a importância de as nomeações obedecerem ao mérito dos nomeados e não à sua filiação partidária, quando os seus governos tiveram o mesmo tipo de práticas.
Com o discurso desta semana, Cavaco cumpriu a velha tradição dos presidentes reeleitos: cooperação no primeiro mandato, tiro ao governo de serviço no segundo. Fê-lo de uma forma abrupta e intencional, procurando certamente que isso tivesse consequências, porque um discurso de posse não é um mero desabafo. Que consequências terão então visado? Talvez somente as que enunciou. Mas Cavaco sabe que o autêntico programa de ação que apresentou não vai ser cumprido — nem pelo Governo nem pelas oposições, na parte que lhes competiria. E é óbvio que ponderou o efeito político de tudo isto, quer pelo que disse quer pela forma como o disse.
Ao separar as águas desta forma agreste, tomou claro que, a seu ver, o Governo não cumpre. Uma vez que as oposições dificilmente o derrubarão e que o Presidente nunca correrá o risco de dissolver o Parlamento sem fundadas expectativas de que um governo diferente e mais forte resulte de novas eleições — algo que está longe de se ter neste momento —, é possível que Cavaco aposte na renúncia do primeiro-ministro e por isso o pressione desta forma ostensiva. Trata-se de uma aposta arriscada, se for o caso, porque Sócrates não é de se demitir. Mas falta saber se o chefe de um Governo que apostou tudo em fugir do fundo europeu e do FMI ficará em condições de governar caso se veja confrontado — como é cada vez mais provável — com a inevitabilidade de os chamar. E se ele próprio, perante essa inevitabilidade, não verá vantagens em sair de cena, quem sabe se na expectativa, ainda que à primeira vista ilusória, de um regresso a prazo.
Autor
Fernando Madrinha
Categoria
Opinião
Palavras-Chave
Presidente / Cavaco / Governo / pensa / discurso / País / Silva / passado / disse / República
Entidades
Cavaco Silva / Cavaco / Mário Soares / Sócrates / Parlamento
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