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Triste País em que os lúcidos são rotulados de dementes

2011-01-05

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Se não começarmos a tentar inverter estas situações depressa a negrura que paira sobre 2011 vai ser pior do que pensamos.

O fim do ano acaba por ser uma época em que quase somos forçados a olhar para o tempo que passa. E a lembrar este e aquele caso, este e aquele doente, esta e aquela cara que, de alguma forma, nos tocaram e nos deixaram marcas. 2010 foi um ano muito rico em termos de boas lembranças, sobretudo de doentes que ultrapassaram em muito a relação profissional e se mostraram mais amigos que doentes.
Recomecei o velho hábito de escrever um diário para manter as memórias destes casos que nos aquecem o coração. E também para manter as memórias do mal que encontrei –há que não esquecer. É uma frase aparentemente mais adequada aos campos de concentração e ao genocídio do Ruanda, mas a meu ver o mal, em formas mesquinhas ou em formas estrondosas é sempre mal. A história de dar a outra face com que somos embalados desde a infância na nossa cultura católica leva, a meu ver, a interpretações erróneas de como lidar com o mal. Afinal o dar a outra face, o perdoar, o amar os nossos inimigos, o fazer o politicamente correcto não passa de uma forma de cobardia moral. Como é uma forma de cobardia moral não apontarmos a dedo à corrupção, ao terrorismo sobre os funcionários exercido pelas instituições, à hiper-super-burocratização do País. É uma forma de cobardia moral continuarmos a cumprimentar socialmente patifes, que sabemos ser patifes e ladrões que sabemos ser ladrões. Não acredito que o Menino Jesus que mais tarde expulsou os vendilhões do Templo, nos peça isso. Assim, os meus votos para 2011 serão, parafraseando uma conversa de Festa de Natal, que deixemos de uma vez por todas de ser bonzinhos e tentemos ser pessoas e eventualmente bons, na acepção da palavra de justo, verdadeiro e defensor de quem não se consegue defender. Assim, este ano que vem vai dar um trabalhão. Mas ao darmos um passo nesta direcção estou certa de que vamos descobrir que a minoria que agracia as manchetes dos jornais e tem destruído o nosso País, é mesmo isso - uma minoria.
O senhor Z, com 87 anos, tem uma visão aterrorizadora de 2011. Veio à consulta trazido por uma filha que se preocupava com o excesso de nervos do pai. E como é, sem dúvida, uma história portuguesa vale a pena contar. O senhor Z foi sempre agricultor - reformou-se e passou a ter uma reforma pequenina de 200 euros. Vive com a mulher e tem uma filha, um genro e dois netos. Até há mais ou menos dois anos, a vida do senhor Z era uma vida dita normal. Vivia numa casa fria, mal feita – mas nunca teve melhor. Tinha galinhas e cultivava ele e a esposa uma série de leiras. Punha a maior parte da comida na mesa para ele e para a casa da filha desde abóboras a batatas e a couves. Não foi estimulado a fazer mais, nem a tentar mudar o tipo de cultura, nem a vender, nem a fazer uma empresa agrícola. Não sei se teve a ver com o medo de sobressair (e atrair "o mal de inveja"… ) ou se por comodismo. Manteve-se igual ao pai dele e a si próprio e trabalhava muito, o que lhe dá só por si um enorme mérito. E gostava do que fazia, e da terra e de ver crescer as coisas. Há dois anos, na altura dos 85 anos, a sua portugalidade tocou-o - fez uma fractura do colo do fémur e foi tratado – mal - no SNS. Ficou a coxear, com mais dificuldade de equilíbrio. No estrangeiro, teria direito a uma indemnização, aqui nem se falou nisso - afinal o senhor Z era velho e não havia mais nada a fazer (o que não deixa muitas vezes de ser a saída mais fácil, independentemente dos anos que o doente tem!). E pronto – o senhor Z deixou de poder trabalhar. A esposa, típica mulher portuguesa a tratar da casa, das galinhas e do senhor Z não conseguiu aguentar. As leiras foram abandonadas.
O senhor Z passa a tarde em frente da TV- vê os quatro telejornais e como está completamente lúcido recebe todas as mensagens aterrorizadoras que vêm da "caixa mágica". Vê a terra abandonada, e o genro e o neto a gastar dinheiro - ao fim de semana nas comezainas, à semana no supermercado. E literalmente " passa-se"- grita com toda a gente, lança profecias da fome que vem aí e da vergonha que é nenhum deles especificamente trabalhar a terra para dar de comer à família.
Um médico não deve intervir em situações familiares e manter a neutralidade nestes casos é o ideal por todas as razões. Mas a imagem daquele homem a bradar contra uma sociedade que se afunda lentamente, a par ou provavelmente porque a terra está a afundar-se também, fez-me lembrar os agricultores da minha aldeia, e o respeito pela terra que nos era inculcado – a terra que não possuímos, mas que nos possui e por onde passamos.
Tive de dar razão ao senhor Z. Parece-me que, para pena da filha, que esperava um diagnóstico de Alzheimer e uma benzodiazepina que o sentasse num sofá a dormir " como um velho normal". Triste País em que os lúcidos são rotulados de dementes. Não me atrevo a dizer o que penso da sanidade mental de alguns figurões, mas se não começarmos a tentar inverter estas situações depressa a negrura que paira sobre 2011 vai ser pior do que pensamos.



Autor
Assunção Vaz Patto

Categoria
Opinião

Palavras-Chave
senhor / País / terra / filha / manter / doente / doentes / cobardia / moral / passa

Entidades
Menino Jesus / senhor Z / Alzheimer / Triste País / SNS

Artigo Preservado pelo Arquivo.pt
→ Ver Original

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