José Guilherme, o último ferrador no ativo na vila do Paul.
Quando o homem domesticou o cavalo e começou a usá-lo como meio de transporte, a primeira limitação que encontrou foi em relação aos cascos. Os cascos quebravam facilmente, inutilizando temporariamente o animal. Diversas tentativas foram feitas para os proteger utilizando materiais (cordas e couro, entre outras ) ao alcance dos pioneiros chegando ao ferro moldado no formato dos cascos, a conhecida ferradura.
Mudam-se os tempos, mudam-se … os meios de transporte, hoje em dia mecanizados. Mas na verdade, os animais (o cavalo era utilizado pelas classes mais abastadas enquanto os menos favorecidos utilizavam os burros ou mulas atrelados a carroças) transportavam pessoas e bens em tempos idos.
Ora, a utilização quotidiana destes animais também no amanho das terras, como era o caso dos bois, resultava num desgaste dos cascos havendo necessidade da aplicação de ferraduras, registando-se na altura uma procura significativa dos serviços do ferrador que ainda cortava as crinas aos animais e dava resposta às necessidades da época. Sendo que, as oficinas dos ferradores eram locais de eleição da crítica social onde se sabiam das novidades da terra e as histórias fervilhavam como o aço na bigoma moldado pelas mãos ágeis do artífice do ferro, com o seu grande avental de couro, segurando numa mão um martelo e na outra a ferradura em brasa que ia ganhando a forma do casco do animal preso pelas patas num tronco.
À moda antiga
Na atualidade, esta arte tradicional está em vias de extinção tal como a conhecíamos outrora. A evolução tecnológica ditou as suas leis e os que continuam a exercer esta profissão deslocam-se em viaturas transformadas em oficinas ambulantes, apetrechadas com equipamentos e todo tipo de ferraduras pré-fabricadas, que permitem executar o trabalho de forma rápida e eficaz, não obstante haver ainda quem resista e continue a trabalhar (ainda que muito pouco) à moda antiga. Como é o caso do último ferrador da vila do Paul.
José Martins Guilherme,72 anos, fala desta profissão com entusiasmo. "Nasceram-me os dentes a ferrar animais. Já o meu bisavô trabalhava na arte, que aprendi com o meu pai" conta este descendente de uma geração de ferradores.
Com efeito, esta pequena oficina existe na família de José Guilherme há mais de um século, a funcionar com mais ou menos regularidade. " Aqui nas redondezas não havia mais ferradores, daí que tínhamos muito trabalho. No tempo do meu pai, começávamos a trabalhar às quatro da manhã e ferrávamos cerca de cinquenta bois por dia. Os carvoeiros, durante a semana, andavam pelas serras a arrancar as torgas para fazer o carvão que iam vender para a Covilhã ao domingo. Então a segunda-feira era destinada para eles porque arrumavam-se para aqui para ferrarem os seus animais. Também os ganhões transportavam carradas de lenha para as fábricas da Covilhã. Eram bons clientes" assegura este artesão do ferro.
Muito trabalho, pouco dinheiro
Nem sempre José Guilherme trabalhou na arte e, na década de 70 do século passado, partiu para terras francesas onde esteve emigrado durante 22 anos. Contudo, a sua oficina não chegou a fechar de todo porque entretanto, outro ferrador, de nome Luciano, foi assegurando o serviço aos clientes. " Sabe, embora o trabalho fosse muito, a paga era muitas vezes em géneros ou à troca de trabalho na lavoura. Só os mais abastados pagavam cerca de dez tostões por ferradura" esclarece o interlocutor que, de seguida, reforça a ideia. "Nesta terra, sempre houve muitos animais para transportar as pessoas e os bens. Cheguei a contar mais de 100 juntas de bois, mas também havia os almocreves que transportavam o azeite, os moleiros que levavam a farinha às aldeias da redondeza, para além dos tecelões que iam por os cortes de fazenda aos donos das fábricas do Tortosendo e da Covilhã. Mais tarde, quem tratava das terras deu em comprar burros que atrelavam as carroças onde transportavam tudo, desde do estrume aos géneros que apanhavam nos seus terrenos. Tudo acabou. Os tratores substituíram os animais e agora só dou conta de um burro na posse de uma família da vila" lamenta.
"É pena que ninguém queira aprender"
Ao longo dos anos em que exerceu a profissão, este paulense teve algumas peripécias, umas mais agradáveis do que outras. " Antigamente juntava-se aqui muita gente, sabiam-se as novidades, passavam-se dias inteiros na forja que servia também para assar umas batatas e uns petiscos, motivo para se beber uns copos em convívio. Por vezes os clientes embebedavam-se e discutiam entre eles. Mas depois tudo passava e ficavam todos a bem. Também ainda fui escoiceado algumas vezes, um delas com maior gravidade, mas continuo a gostar desta arte. Pena é que ninguém queira aprendê-la. Vai acabar por desaparecer" lamenta José.
Teimosamente, José Guilherme continua a ferrar alguns animais e tem tudo intacto na oficina, tal como a herdou do pai. " Agora, de vez em quando, vêm aqui a buscar-me para ir ferrar uns cavalos à Meia-Légua e pouco mais. Mas continuo sempre disponível para trabalhar na arte e faço questão de manter a oficina à moda antiga enquanto puder. Só gostava que isto não acabasse por aqui. Depois de várias gerações de ferradores a exercer na família, chegar assim ao fim do percurso é triste" afirma o último ferrador no ativo da vila do Paul.
Autor
João Cunha
Palavras-Chave
José / animais / ferrador / Paul / cascos / Guilherme / arte / último / vila / oficina
Entidades
José Guilherme / José Martins Guilherme,72 / Luciano / paulense / Pena
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